domingo, 18 de maio de 2008

A IMPORTÂNCIA DAS TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR .

A IMPORTÂNCIA DAS TEORIAS DA EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR[1].

Vilmar Alves Pereira[2]

“É ambição de nossa pedagogia que os alunos tenham acesso a conteúdos verdadeiros e que, ao mesmo tempo, os interessem e sejam sentidos como um auxílio no seu próprio esforço para viverem e para conhecerem. E, então, o professor, há de parecer-lhes também uma instância auxiliadora e não uma potência hostil[3].”

Resumo
O presente artigo discorre sobre a necessidade e a importância que as teorias da educação assumem na formação do educador. É um estudo ainda incipiente e tem como objetivo demonstrar que sempre que estamos realizando uma tarefa pedagógica, cientes ou não estamos legitimando, ou defendendo, uma teoria. Desse modo não existe neutralidade no fazer pedagógico. Também pretendemos demonstrar que a pedagogia dialética aponta para um horizonte de emancipação dos sujeitos envolvidos com uma educação que busca transformar a realidade.

Delineando o assunto

Pensar sobre a formação do educador em nosso tempo, consiste num grande desafio. A educação assume faces diferentes em cada período histórico. As influências sociais, políticas e econômicas consistem nos marcos norteadores do processo educativo. Concomitante a isso, assistimos na universidade e nas salas de aula, por parte de alguns professores e alunos, um grande anseio de mudança. No entanto, essas mudanças, só serão possíveis, se os envolvidos com a formação do educador, possibilitarem aos novos educadores, algumas categorias básicas para a interpretação da realidade. Penso que aqui se localiza a função da filosofia da educação, e, em específico, das teorias da educação. Historicamente, as teorias da educação estiveram sempre legitimando modelos de escolas e de sociedades. O que pretendo aqui apresentar, num primeiro momento, é que em seu conjunto, as teorias da educação podem estar divididas em dois grandes vetores: uma primeira de caráter essencialista-tradicional e uma Segunda, de caráter existencialista- liberal. A superação de ambas, só é possível por uma terceira, que consiste numa pedagogia de caráter materialista-histórico, dialética que busca em seu conjunto uma síntese entre as pedagogias anteriormente apresentadas.

Em relação a primeira pedagogia (Essencialista-tradicional), a sua origem está identificada no idealismo clássico grego, principalmente na concepção de ser que os gregos possuíam. Platão é um dos primeiros pensadores que possui uma concepção de ser, que serve de sustentação ao ideal da pedagogia essencialista. Segundo esse pensador, a realidade se apresenta de forma dualista. Ou seja, existe um mundo real, que ele denomina de mundo das sombras e existe um mundo ideal, denominado de mundo da luz, da sabedoria e da perfeição.

Ora, se o homem se encontra no mundo real (das sombras e da imperfeição) e anseia alcançar o mundo ideal, do qual ele é apenas uma cópia, qual é o processo que deverá fazer para que ocorra essa mudança? Platão afirma que isso ocorre pelo processo da reminiscência, ou seja, ele deve constantemente buscar, pela educação e contemplação, recordar o mundo ideal e desejá-lo. Na concepção de Platão, a verdadeira essência não se encontra no mundo das sombras, mas no mundo da luz. Em outros termos, significa afirmar, que somos cópia imperfeitas se uma essência perfeita.

Que decorrências pedagógicas resultam desse processo?
Resulta numa pedagogia que tem como prioridade pensar o “aluno como deve ser” e não como ele é. Se o mundo real (sensível) não é perfeito, e, em certo sentido é uma espécie de empecilho ao ser humano, logo deve ser desprezado. Pedagogicamente, essa teoria, irá legar para a tradição, toda uma ignorância da realidade do aluno. Para Platão, por exemplo, os desejos do corpo, são elementos que impedem o homem de atingir o conhecimento. Daqui o legado para a pedagogia essencialista , da idéia de castigo.

As idéias de Platão são reafirmadas no período medieval onde o “homem como deve ser”, ganha o máximo de expressão. Isso aparece em algumas teorias do filósofo Agostinho, principalmente na sua obra Cidade de Deus. Nesta obra o dualismo Platônico assume uma roupagem religiosa e consiste num grande marco do pensamento medieval. A parte da igreja envolvida com a educação tinha um objetivo bem claro: é necessário educar para o espírito. Na verdade, o trabalho pedagógico era realizado com um aluno abstrato, deixando de lado toda a sua realidade social. Esse é um dos nortes da pedagogia tradicional- essencialista: não interferir na realidade. Nela ocorre apenas a transmissão de conhecimentos. É uma “educação bancária[4]” como afirma Paulo Freire.

A pedagogia essencialista possuía também alguns pontos posítivos como: Em certo sentido os professores eram competentes, dominavam os conteúdos e conseguiam ministrar suas aulas com disciplina.

Vai ser somente no período renascentista, que surgem algumas resistências, ainda que tímidas, a pedagogia essencialista. Foi Comenius, que motivado por algumas idéias de mudanças quem postulou uma pedagogia da natureza. Esta pedagogia dava mais espaço para questões humanas. No entanto, a concepção de natureza de Comenius, era ainda era ainda essencialista pois identificava em cada ser uma “natureza apriori[5].”

Os jesuítas, com a preocupação em salvar almas e “lapidar” os alunos, foram os grandes propagadores dessa concepção essencialista tradicional para o nosso contexto. Basta você ler as obras sobre a história da pedagogia desse período, e perceber que os métodos implementados nas aulas desprezavam a realidade da criança, sua língua materna e seus costumes. Os internatos se constituíram no grande universo de encontrar a essência pura dos alunos.

As oposições à pedagogia essencialista, desta vez, bem mais contundente, começam a se desenvolver no século XVIII na figura de Rousseau[6] e Pestalozzi. Ambos postulam uma educação a partir da existência real dos indivíduos. Isso significa, trabalhar o “aluno como ele realmente é” e não mais como deveria ser. Cabe afirmar, que os indicativos da pedagogia da existência, apontam para um novo horizonte: do aluno real. Nesse período, ocorrem vários esforços em afirmar esse novo espaço destinado ao aluno.

Um dos fortes conceitos trabalhados nesse contexto pela pedagogia e que é desenvolvido concomitante com os anseios da classe burguesa que está em afirmação, é o de indivíduo. As pedagogias liberal e da escola nova aproveitam o espaço criado pelas necessidades de mudanças e começam a criar um novo sujeito na escola. O aluno é respaldado por várias teorias (até mesmo psicológicas), como um indivíduo de direito e de deveres; começa a ocupar o centro do processo de ensino-aprendizagem. O culto ao indivíduo e a liberdade, defendido pela burguesia invadem o universo da escola e legitimam o novo sistema que está se impondo politicamente. Para que isso ocorra, é necessário desprezar tudo o que a escola tradicional essencialista fez. O legado dessas pedagogias foi um aluno desobediente, que não entendeu o conceito de liberdade e que adquiriu pouca formação. Cabe dizer, que essa era a pretensão da falsa pedagogia burguesa.
Saviani, em Escola e Democracia, faz uma analogia entre pedagogia da essência e da existência com a teoria da curva da vara de Engels. Segundo ele, o que ocorreu na transição da pedagogia de uma para outra, foi a inversão de posturas antagônicas e radicalização dos interesses dominantes no processo educativo. Esse antagonismo nas teorias da educação é discutido também por Suchodolski ao afirmar que, tudo o que pertencia a pedagogia da essência estava errado, a pedagogia da existência não proporciona um avanço epistemológico para a ciência da educação, ao contrário significou apenas uma relação de extremos.

Para a solução dessa querela faz-se necessário a presença de uma outra teoria da educação que busque superar as limitações de ambas. Não basta o dogmatismo da pedagogia tradicional, nem o liberalismo da pedagogia da escola nova. Nem essência, determinada “apriori,” e nem existência livre, mas um aproveitamento maduro dos princípios que norteiam essas teorias e que podem ser aproveitados na atualidade.

As posições mais aceitas, no sentido de superação dessa dicotomia, e com a qual concordamos, consiste em postular uma pedagogia crítica, dialética, uma pedagogia que possua em seu bojo um novo conceito de mudança. É uma pedagogia que deve indicar a “justa medida[7]” na esfera pedagógica. Essa pedagogia, embasada nos princípios do materialismo histórico possui elementos norteadores para a interpretação da realidade. Nessa pedagogia não se despreza todos os princípios da pedagogia da essência. Exemplo disso é caso da disciplina. A disciplina, como sabemos é um dos fortes pilares da pedagogia essencialista. A pedagogia dialética entende que a disciplina é imprescindível para o desenvolvimento de qualquer aula. Não o extremismo da disciplina tradicional mas uma disciplina coordenada por uma autoridade autêntica aliada a princípios da pedagogia da existência.
A pedagogia dialética busca superar os antagonismos em todos os sentidos. É o caso, por exemplo, da importância que atribui ao meio no qual o aluno se encontra inserido. Para a pedagogia tradicional a realidade não precisa ser aprendida. Diferente disso, a pedagogia dialética entende a realidade como ponto de partida para a aquisição de conhecimentos e para a concretização de mudanças.

Quando vejo, pais, professores e alunos preocupados com a questão sobre qual método utilizar e quando percebo a maneira que as teorias pós-modernas estão invadindo o universo da ciência pedagógica, penso que essa “aporia metodológica[8]” é resultando da ausência de uma teoria da educação que dê conta da realidade. No meu entender a pedagogia dialética e a Teoria Crítica[9] aliada a educação, possuem um potencial muito fecundo que contribui significativamente na formação do educador. Não é um potencial que se baseia numa denúncia estéril e ineficaz da realidade e das outras teorias da educação, mas, ao contrário, é um viés de superação e de possibilidade de emancipação do ser humano.

Penso que a questão a ser levantada por nós educadores é muito simples: que professor eu quero formar? Se eu quero formar um professor tradicional, há uma teoria e várias práticas que embasam esse modelo. Se eu quero formar um professor liberal, há nas teorias da educação toda uma pedagogia que se sustentou sobre os princípios da dessa escola e sociedade. Mas se quero comprometer- me com um educador crítico, aí, terei que pensar e repensar, uma postura epistemológica e prática que de conta da realidade conflitiva. Sem dúvida por essa via o compromisso é bem maior.
Ao meu entender, os cursos de formação de professores, principalmente os de pedagogia, necessitam constantemente reavaliarem a concepção sobre qual educador queremos formar. Muitos colegas vêem com espanto, o fato de alguns recém formados em cursos de pedagogia ao se inserirem no universo de trabalho, utilizarem, quase que na totalidade os princípios da pedagogia essencialista-tradicional. Para mim, esta questão é decorrente da forma que foram educados. Se a pedagogia dialética não surtir efeitos é por que não foi dialética. Essa questão abre espaço para uma outra característica da pedagogia dialética que Paulo Freire discute na obra Pedagogia da autonomia. É a idéia de que ensinar exige comprometimento. Esse comprometimento se dá tanto no viés ético (responsabilidade com o aluno que estamos formando), quanto no postura epistemológica que defendemos.

A pedagogia dialética, quando bem trabalhada, possibilita ao professor e ao aluno, não apenas um novo discurso, mas uma nova prática. É uma pedagogia que não se coaduna com as proposições do sistema vigente. É uma pedagogia que aceita o diferente e utiliza da crítica porque a entende como necessária para que ocorram mudanças significativas não somente na escola, mas na sociedade como afirma Libâneo: “Integrar aspectos material/formal do ensino e, ao mesmo tempo, articulá-los com os movimentos concretos tendentes a transformação da sociedade, eis os propósitos da pedagogia crítico-social dos conteúdos. Ela valoriza a escola enquanto mediadora entre o aluno e o mundo da cultura-construída socialmente- e cumpre esse papel pelo processo de transmissão/ assimilação crítica dos conhecimentos, inseridos no movimento da prática social concreta dos homens.[10]

É uma pedagogia virada para o futuro como afirma Suchodolski: “Na concepção da educação dirigida para o futuro o presente deve ser submetido a crítica, e então deve acelerar o processo de desaparecimento de tudo o que é antiquado e caduco, acelerando o processo de concretização do que é novo.[11]
Em outros termos é uma pedagogia para além dos métodos autoritários ou democráticos como percebe Saviani. É uma pedagogia comprometida com a prática social: “Considerando-se, como já se explicitou, que, dado o caráter da educação como mediação no seio da prática pedagógica, tem na prática social o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada.[12]

É uma pedagogia que possibilita ao educador, um comprometimento com mudanças sociais e, necessariamente lhe confere, um estatuto seguro para a construção de uma proposta pedagógica na realidade onde ele atua ou vai atuar.
Esses indicativos me levam a afirmar, que fazer educação é assumir um compromisso político. No bojo dessa opção político-pedagogica, é imprescindível uma clareza sobre qual é a teoria da educação que fundamenta a minha prática.



REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 14a ed. São Paulo: Paz e terra, 2000.
LIBÂNEO, José carlos. Democratização da escola pública: A pedagogia crítico-social dos conteúdos. 2a ed. São Paulo: Edições Loyola, 1985.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. 32a ed. Campinas: Autores Associados, 1999.
SUCHODOLKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas: a pedagogia da essência e a pedagogia da existência. 4a ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.

[1] Esse ensaio tem como sustentação teórica alguns escritos de Bogdan Suchodolski; especificamente, a obra A pedagogia e as grandes correntes filosóficas; Dermeval Saviani, Escola e democracia, e José Carlos Libâneo, Democratização da Escola Pública: A pedagogia Crítico Social dos conteúdos. Também é resultado de algumas reflexões oriundas das aulas de filosofia da educação nos cursos de pedagogia. (Publicado em primeira versão In: : Educação: reflexões, vivências e pesquisa. 1 ed.Caxias do Sul : Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2002, v.01, p. 55-61.

[2] Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (linha de pesquisa Filosofia e Educação) e Professor de Filosofia da Educação na Faculdade Anglo Americano de Caxias do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ- da PUC-RS- Racionalidade e Formação.
[3] SNYDERS, Georges apud LIBÂNEO. Democratização da escola pública. 1985.p.13-14.
[4] Educação cuja metodologia concebe o aluno como um mero receptor passivo de conteúdos. Ao professor cabe a incumbência de transmitir o conhecimento.
[5] Natureza previamente existente em cada ser humano. Segundo a qual a educação o aluno deveria conformar-se com essa natureza.
[6] Sobre a pedagogia de Rousseau realizei nosso estudo da dissertação de mestrado onde defendo a existência de uma unidade Pedagógica presente no conjunto de suas obras. A discussão central desse trabalho, entitulada A unidade pedagogica na obra de Jean Jacques Rousseua, se encontra publicada nos anais da ANPED Sul, No III Encontro dos Pesquisadores De Educação Em Pós Graduação da Regional Sul na seção comunicações, dezembro de 2000.
[7] A idéia de justa medida é um conceito desenvolvido no ideal ético grego, principalmente em Aristóteles, para demonstrar a possibilidade de equilíbrio entre as ações humanas. Aqui entendida entre as duas concepções antagônicas.
[8] Uma espécie de beco sem saída.
[9] Estou fazendo referência aqui a teoria produzida pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Essa linha de discussão faz parte de estudos que desenvolvemos em pesquisas como membro do grupo de pesquisa Teoria Crítica e educação da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo e que estamos desenvolvendo neste semestre pelo departamento de Educação da Universidade de Caxias do Sul, através do projeto de pesquisa em andamento denominado: Educação e Infância: algumas observações a partir da Teoria Crítica. Já possuímos algumas publicações sobre a referida temática. São dois trabalhos publicados na revista Espaço pedagógico. Um primeiro estudo é sobre A pedagogia da Radical de Henry Giroux e um segundo Sobre a Industria Cultural e o desaparecimento da infância.

[10] LIBÂNEO, José Carlos.Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdo, 1985, p134.
[11] SUCHODOLSKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas, 1992,p. 129.
[12] SAVIANI,Dermeval. Escola e Democracia, 1999.p.86.
REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 14a ed. São Paulo: Paz e terra, 2000.
LIBÂNEO, José carlos. Democratização da escola pública: A pedagogia crítico-social dos conteúdos. 2a ed. São Paulo: Edições Loyola, 1985.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação política. 32a ed. Campinas: Autores Associados, 1999.
SUCHODOLKI, Bogdan. A pedagogia e as grandes correntes filosóficas: a pedagogia da essência e a pedagogia da existência. 4a ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.

PARA QUE FILOSOFIA

Convite à FilosofiaDe Marilena ChauiEd. Ática, São Paulo, 2000.

Introdução

Para que Filosofia?

As evidências do cotidiano
Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como "que horas são?", ou "que dia é hoje?". Dizemos frases como "ele está sonhando", ou "ela ficou maluca". Fazemos afirmações como "onde há fumaça, há fogo", ou "não saia na chuva para não se resfriar". Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, "esta casa é mais bonita do que a outra" e "Maria está mais jovem do que Glorinha".
Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: "Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu", e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: "Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender".
Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa "é legal".
Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto "que horas são?" ou "que dia é hoje?", minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando digo "ele está sonhando", referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.
Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão.
A frase "ela ficou maluca" contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.
Quando alguém diz "onde há fumaça, há fogo" ou "não saia na chuva para não se resfriar", afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.
Se, por exemplo, dissermos que "o sol é maior do que o vemos", também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos.
Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos.
Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade.
No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.
Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear.
Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira.
Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira "no duro", "pra valer".
Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.
Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam "objetivas" ou quando falamos dos namorados como sendo "muito subjetivos", também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém "perde" a objetividade, ficando "muito subjetivo".
Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que alguém "é legal" porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.
Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio.
Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.
A atitude filosófica
Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de "que horas são?" ou "que dia é hoje?", perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer "está sonhando" ou "ficou maluca", quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?
Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo?
Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê?
Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos?
Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.
A atitude crítica
A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.
A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica.
A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico.
A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto.
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.
Para que Filosofia?
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?
É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser.
Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata.
Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma.
Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas?
Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.
Atitude filosófica: indagar
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são:
- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;
- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;
- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor.
A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.
A reflexão filosófica
Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.
A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?
Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.
Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana.
Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.
Em busca de uma definição da Filosofia
Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é?
Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia:
1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário.
Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade.
A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la.
2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.
A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la.
3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina.
Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável.
Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável.
No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.
Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita.
4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores.
A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc.
Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.
Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres?
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.
Inútil? Útil?
O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira?
Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos.
Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana.
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

MARCO TEÓRICO

Situando Nietzsche (1844-1900)
Vilmar Alves Pereira[1]

A tradição ocidental teve por base no decorrer de sua história ideais metafísicos. Defendeu uma idéia de razão, sujeito, Deus, educação, infância e natureza humana que davam sustentação as explicações sobre os fins últimos do homem. A modernidade é o período por excelência de coroamento de diversos desses ideais. Por exemplo; a idéia de um sujeito que dá sentido a tudo, que cria e tem possibilidade de representar a realidade é moderna.

A crítica que Nietzsche (1844-1900) opera à concepção metafísica de sujeito está diretamente ligada a esse sujeito que pretende ser portador de sentido ao mundo. Nietzsche é muito explícito na sua crítica, colocando-se como alguém que não mais atribui credibilidade alguma as diversas formas de emancipação sugeridas no bojo da modernidade. Disso resulta que, para lermos Nietzsche, é necessário que estejamos livres de preconceitos, possibilitando assim uma melhor localização no entendimento de sua obra. O próprio autor desejava que a leitura de suas obras fosse feita por pessoas “com espíritos livres”.

Para Giacóia, a critica de Nietzsche a subjetividade metafísica parte de uma leitura anterior onde identifica na doutrina das idéias de Platão os primeiros traços dessa subjetividade e entende Giacóia, que essa doutrina, “lança uma ponte até a modernidade filosófica na medida em que constitui uma inestimável preparação do idealismo kantino tematizando a seu modo a oposição entre o fenômeno e a coisa em si, com a qual tem início toda a filosofia profunda” (GIACÓIA, 2005, p. 12). Complementa que assim como Nietzsche, Platão foi quem, a partir da Leitura de Heráclito Transvalorou em seu tempo ao mesmo tempo em que estabeleceu as bases do idealismo dogmático. De lá para cá a tradição ocidental teria optado pelo Apolínio e não pelo dionisíaco como Nietzsche tão bem descreve em O Nascimento da Tragédia.

Em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, texto publicado em 1873, Nietzsche estabelece uma forte crítica ao sujeito metafísico, principalmente aquele sujeito que se concebe como conhecedor e que, de certa forma, é aquele que dá sentido ao mundo. Nesse texto, Nietzsche vê o conhecimento como uma grande invenção para a conservação da espécie humana.

No entanto, o fato de o homem inventar o conhecimento para se conservar não se constitui numa verdade; ao contrário, é uma espécie de malogro. A grande questão para Nietzsche, no que diz respeito à sua análise do sujeito, é buscar mostrar ao homem que ele não é nenhum ser excepcional. O fato de ele usar seu intelecto, na maioria das vezes, ao invés de engrandecê-lo, o diminui: “Quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza.” (NIETZSCHE, 1974, p.53.) O homem, destituído de todos os seus ‘a priori’, que lhe davam sustentabilidade, sente-se numa condição em que deve criar formas para se autoconservar, e, é nesse sentido que muitos homens usam o intelecto deixando transparecer que estão criando conhecimentos novos, quando, na verdade, estão apenas se autoconservando. Nesse ponto, Nietzsche critica os filósofos pela prepotência de serem esses criadores, por pensarem que possuem uma melhor cosmovisão.

Para Nietzsche, o intelecto, essa faculdade que a ela foi atribuída tanta confiança, principalmente no que tange à concepção metafísica de sujeito, age como uma arte de enganar. Isso aparece até mesmo nas estimativas de valor que tecemos. É o homem, segundo Nietzsche, que consegue estampar essa forma de malogro:

No homem esta arte de disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar por trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo (...) em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto impulso a verdade. (NIETZSCHE, 1974, p.54.)


Em Nietzsche, a sua descrença é tanta no sujeito que se afirma como esclarecido e conhecedor, a ponto de ele identificar a sua vida como uma mentira. Seria o sujeito metafísico uma mentira? Sim! Para Nietzsche, as representações desse sujeito são apenas para sua conservação. Vejamos que o homem se encontra numa condição em que erra mais do que acerta, mesmo de posse e uso de seu intelecto. E, para que o homem não acabe caindo na velha máxima hobbesiana de “guerra de todos contra todos”, segundo Nietzsche, ele usa do intelecto, para estabelecer uma espécie de tratado de paz. É justamente aqui, na luta pela vida, que devem estar os primeiros impulsos a verdade. Uma decorrência natural desse processo em Nietzsche é a necessidade da constituição de uma lei para orientar as ações humanas na direção da preservação da vida. Novamente aqui, o homem querendo se preservar inventa mais uma forma de malogro, a linguagem: “Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, ou seja, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade” (NIETZSCHE, 1974, p.54).

Na citação acima, é possível perceber um ataque de Nietzsche a mais um dos aparatos seguros do sujeito que até então havia se constituído: um sujeito que havia criado uma forma e uma linguagem clara de explicar os fenômenos. A subjetivação do mundo, que até então havia imperado, passa agora pela malha da desconfiança e é vista apenas como uma necessidade que o homem possui de se conservar. A verdade contida na lei, por mais que seja enganosa, deve ser buscada.

Nietzsche continua sua crítica a esse sujeito que se ocupa com as formas de aplicação da linguagem inventando, criando significações ao mundo: “Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias, que preferências unilaterais...” (NIETZSCHE, 1974, p.55).

Com Nietzsche, toda a modernidade é convidada a passar por um processo de autocrítica. A sua crítica possui um direcionamento bem claro: ataca aqueles que criaram explicações ao mundo e pretenderam que as mesmas fossem verídicas. Há também em sua crítica algumas ironias diretas a Kant, que para Nietzsche, tentando fugir da velha metafísica e buscando encontrar um caminho seguro para a ciência, acaba valendo-se de uma linguagem e de expressões muitas vezes impossíveis de serem assimiladas, caindo novamente na metafísica, obviamente, utilizando outras categorias. Um exemplo de que para Nietzsche isto pode ser identificado está na chamada coisa em si kantiana: “ ‘A coisa em si’ (tal seria puramente a verdade pura sem conseqüências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena” (NIETZSCHE, 1974, p.55).

Representando um ícone da subjetividade metafísica, Kant recebe severas críticas de Nietzsche, pois ele, esse sujeito criador de sentido que se ensaia com todas as suas pretensões, não tem um papel fundamental. Discorrendo sobre Kant ainda, Nietzsche afirma que o seu grande orgulho teria sido a criação da sua tábua de categorias vinculada a descoberta da nova faculdade dos juízos sintéticos apriori. Nietzsche entende que essa descoberta recebeu pelo estatuto da filosofia um valor demasiado. Mediante isso, sugere uma inversão axiológica na formulação da pergunta kantiana no que consiste ao ponto de clivagem de sua descoberta: “porém respostas destas cabem bem numa comédia e já é tempo de substituir a pergunta de Kant “como são possíveis os juízos sintéticos apriori?”, por uma outra: por que é preciso acreditar nesses juízos?” (NIETZSCHE, 2002, par.11).

Assim como Kant, toda a tradição que criou uma linguagem para legitimar uma posição privilegiada ao sujeito ocidental passa pela crítica nietzscheniana. Os signos que constituem a linguagem são, para Nietzsche, apenas metafísicas que não deram conta de uma explicação segura da realidade, pois estavam apoiados numa linguagem metafísica que criou um destino inatingível ao sujeito. Como filólogo, o ataque de Nietzsche está direcionado as categorias lingüísticas que a tradição ocidental utilizou para adjetivar a realidade e, é claro, o sujeito. Isso pode ser percebido se tomarmos como referência as diferentes acepções de homem e os diferentes caminhos por eles trilhados que aparecem no Nascimento da Tragédia como tentativas de adjetivar a realidade. Desde o dualismo platônico, passando pelo dilema do sujeito medieval, que deve rejeitar o presente em nome de uma pátria que não é terrena; avançando na modernidade, temos o sujeito pensante cartesiano; o próprio homem hobbesiano, que cria formas ímpares para superar o estado de guerra; o sujeito rousseauniano que se apóia numa vontade geral, quase divina como instrumento para o sujeito viver de forma democrática e harmoniosa. Posteriormente, o aparecimento de um sujeito transcendental kantiano que almejava se afirmar como portador de sentido da realidade. Tudo isso para Nietzsche não passa de uma criação lingüística metafísica, pois seus esforços não corroboraram com a realidade.

Sugerindo uma outra pergunta a Kant, Nietzsche ataca os fundamentos da subjetividade iluminista e destrona as bases em que ela se encontra ancorada: as categorias mentais.

Até agora, pudemos perceber a crítica de Nietzsche à metafísica, ao intelecto e ao que concebemos como verdade. Sem dúvida, partindo de sua análise, como decorrência natural emerge a seguinte curiosidade: O que é para Nietzsche a verdade? Em Sobre Verdade e mentira no sentido extra-moral, texto aqui em estudo, Nietzsche, além de criticar o filósofo, vendo-os como falsos construtores de verdades, tem um conceito de verdade que provoca um “corte epistemológico[2]” na forma como entendemos e concebemos o sujeito moderno. As explicações que damos ao mundo mudam radicalmente de sentido à medida que contrastadas com seu conceito de verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poéticas e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esquecem que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1974, p.56).

O desencanto de Nietzsche é o desencanto relacionado ao sujeito que, para ele, constituiu falácias para poder, mediante situações de necessidade e fraqueza, se identificar como um sujeito capaz de explicar e dar sentido ao cosmos no qual está imerso. Com seu entendimento sobre verdade, Nietzsche derruba as estruturas seguras, os itinerários claros e concisos e as morais mais puras e corretas que tinham um “télos” aparentemente bem definido: levar o homem a um estágio mais evoluído.

Ainda em relação a essa questão da verdade em Para Além do Bem e do Mal, criticando os filósofos como aqueles que criam preconceitos nas pessoas e se consideram os indicadores da verdade metafísica, Nietzsche, mais uma vez, aponta para a possibilidade de uma outra pergunta que não está direcionada aos “télos” do sujeito aí constituído: “considerando que queremos a verdade: Por que não havíamos de preferir a não-verdade? Talvez a incerteza? Quem sabe a ignorância?” (NIETZSCHE, 2002, par.1)

Esse equívoco, para Nietzsche, é decorrente de uma condição natural no homem: é um ser propenso a deixar-se enganar. Ou seja, o intelecto, ao invés de proporcionar um melhor direcionamento ao homem, acaba por ser e continuar sendo esse “mestre do disfarce”.

Longe de querer oferecer saídas para Nietzsche, uma das formas de enfrentamento da realidade pode ocorrer pela arte, pois o homem intuitivo e o homem racional, estando ambos com o anseio de domínio sobre a vida, se equivalem no que tange à irracionalidade. A única diferença é que o homem intuitivo, pela arte, consegue captar a vida num sentido mais genuíno: “O homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo e redenção.” (NIETZSCHE, 1974, p.60). Nietzsche alerta para o fato de que o homem intuitivo não está livre do erro, mas no erro, na infelicidade, até o seu sofrimento é mais autêntico, diferente do homem racional que busca trapacear até a infelicidade.

O sujeito em Nietzsche não encontra a verdade naquilo que até então fora concebido como verdade. Isso significa afirmar que a verdade não emerge da pretensa racionalidade do sujeito metafísico, mas de uma “irracionalidade” que se dispõe a criar constantemente; nisso Nietzsche se localiza como perspectivista.

O perspectivismo de Nietzsche pode ser resumido na famosa frase: ''Não existem fatos, só interpretações.'' Essa afirmação tem conseqüências complexas, uma delas dizendo respeito ao lugar de destaque que a ciência moderna conquistou na sociedade contemporânea. Com base no pressuposto de discurso neutro, objetivo e absolutamente descritivo, a ciência fez da verdade e do conhecimento seu latifúndio exclusivo. Mas a perspectiva nietzschiana levanta a suspeita de que não há uma verdade absoluta e coloca a ciência no mesmo patamar das artes e das religiões, como apenas uma entre as muitas possíveis interpretações da realidade. Silvia Pimenta procura mostrar que o perspectivismo pressupõe uma ontologia, ainda que negativa. O perspectivismo não é mera inversão da metafísica, ou seja, mera substituição dos tradicionais elogios à alma e à racionalidade por um elogio ao corpo, à natureza e à arte. Num mundo sem fundamento, como Nietzsche o concebe o acaso, entendido como a ausência de racionalidade, contamina necessariamente tudo.

Em Para Alem do Bem e do Mal, sugerindo uma filosofia do futuro aponta para a necessidade de espíritos muito livres capazes de transvalorar as noções que predominam nos juízos existentes, “devemos livrar-nos do mau gosto de querermos estar de acordo com muitos. “Bom”, devia ser bom quando dito pelo vizinho. E como é que poderia haver um bom comum”! A palavra contradiz-se em si mesma. Aquilo “que pode ser comum tem sempre pouco valor” (NIETZSCHE, 2002, par. 43).

Mudança de valores e descrédito nos fundamentos universais que embasam o sujeito moderno são alguns preceitos de uma nova acepção filosófica mais livre da crença nos fundamentos da metafísica da subjetividade. A ruptura que Nietzsche estabelece ao sujeito metafísico abala toda a concepção ocidental de ser, e é esse impulso que leva a tradição mais tarde a repensar a metafísica.

Como já mencionamos, a crítica que Nietzsche estabelece é uma crítica que transcende pequenas instâncias. Ela levanta e nos sugere uma série de suspeitas em todas as nossas verdades, nossas instituições, nossos “portos-seguros”. O homem, este projeto infinito, anseia constantemente alcançar um lugar seguro e uma felicidade plena. Isto não é possível ser encontrado na perspectiva do sujeito em Nietzsche. A morte de Deus que Nietzsche propõe em suas obras não se dirige apenas ao Deus concebido pelas religiões clássicas dos pastores e rebanhos, mas a toda a metafísica ocidental. Para Nietzsche, o homem enganou-se sobre o sentido da vida, buscando encontrar transcendências que não eram alcançáveis, buscando verdades que eram puras metáforas.

Com sua crítica, Nietzsche não quer acabar com as instituições e com a vida das pessoas; ao contrário, em toda a sua obra há um aspecto central, que é a defesa da vida. Não uma vida que deve ser pré-determinada e cheia de ‘teleologias’, mas uma vida que deve ser criada a cada instante. Nietzsche também não nega a razão, apenas a usa sob outra perspectiva, não como uma inventora do conhecimento e nem como a faculdade que constitui uma legião de senhores para imperar sobre os rebanhos. Com Nietzsche, o homem adjetivado historicamente como racional perde seu poder, sua prepotência e seu status.

As decorrências da concepção de sujeito de Nietzsche para as ciências da educação podem proporcionar excelentes reflexões.
[1] Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (linha de pesquisa Filosofia e Educação) e Professor de Filosofia da Educação na Faculdade Anglo Americano de Caxias do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa CNPQ- da PUC-RS- Racionalidade e Formação.
[2] Expressão utilizada para demarcar uma ruptura entre um paradigma e outro cf JAPIASSU, op.cit. p.26.